Antropologia jurídica: Uma definição prática
por Leonardo Marcondes Alves - retirado do site:
https://ensaiosenotas.wordpress.com/2012/10/30/antropologia-juridica-uma-definicao-pratica/

É legal encontrar juristas que saibam um pouco sobre antropologia,
mas no geral noto que desconhecem a antropologia jurídica em seu sentido
estrito.
Antes, é necessário desfazer alguns preconceitos:
- Antropologia jurídica não é antropologia para profissionais de direito.
- Antropologia jurídica não é direito para antropólogos.
Essa distinção se faz necessária porque vários livros disponíveis no
mercado brasileiro apresentam títulos vistosos como “Antropologia
Jurídica” ou “Antropologia do Direito” em suas capas, mas na verdade
nada dizem sobre antropologia jurídica. Um manual que adquiri dá uma
noção geral dos principais teóricos e conceitos da antropologia geral;
entretanto, apesar do título, NADA falava sobre antropologia jurídica.
Outro, pior ainda, misturava sociologia com antropologia sem seu autor
se dar conta da grande incidência de parônimos entre essas duas
disciplinas.
A intersecção da antropologia e do direito faza antropologia jurídica ter teorias, métodos e escopo próprios.
Antropologia jurídica é a investigação dos mecanismos de regras executáveis da
sociabilidade humana por meio de métodos que empreguem teorias
antropológicas, usem a interdisciplinaridade e perspectiva holística
típica da antropologia, compreendam o universal pelo particular —
preferencialmente por extensivo trabalho de campo.
Regras executáveis compreendem normas formais (não necessariamente positivadas) garantidas pela organização social e dotadas de poder de sanções negativas (punições) ou sanções positivas
(prêmios) àqueles que desviam da normas comuns (POSPISIL 1958; NADER
1969). O estudo das regras executáveis compreendem tanto seu processo de
positivação, sua conceituação ideal, sua aplicação e os desvios dessas
regras.
Se violações das normas, como vestir fraque na praia de Ipanema, ou
dar uma gorjeta super-generosa não acionam reações formais da sociedade
organizada (por exemplo, o Estado), outras violações sim. É o caso de
quem rouba galinhas ou passa em um concurso público. Nesses casos, as
regras executáveis são regidas por leis: se cumprindo a lei, um vai
para a cadeia e outro assume um cargo público.
A ideia de regras executáveis ultrapassa o estudo de normas, como
enfocam as abordagens realistas da sociologia jurídica (SHIRLEY 1987).
Ao invés de estudar somente normas recepcionadas por um sistema
jurídico, a antropologia possui um foco mais genérico, envolvendo outros
mecanismos de mediação jurídica, desde a vingança ao suborno até normas
religiosas que resultem em resultados juridicamente significantes,
mesmo que o Estado não as reconheçam como leis.
Ademais, nem todas as leis escritas são regras executáveis, pois há o
fenômeno de a lei “não pegar”, vide o Código de Trânsito e os
motociclistas que costuram entre os carros. Há também comportamentos
tidos como lei mesmo sem haver nada formal, como o “depois das dez da
noite, deve-se fazer silêncio” que quando não honrado, é motivo de tirar
satisfações com o vizinho. Assim, tanto o desuetudo e o costumes são
tão relevantes à antropologia jurídica quanto às legislações postas e
especulações doutrinárias.
Uns dos pioneiros da antropologia jurídica, E. Adamson Hoebel
distinguia “uma norma social é legal se quando há ameaça ou fato
negligência ou infração resulta regularmente em aplicação de forças
físicas por um indivíduo ou grupo possuindo a prerrogativa socialmente
reconhecida de assim agir”. (HOEBEL 1954, 28). Entretanto, outros
antropólogos jurídicos expandiram o conceito de norma jurídica para
incluir sanções psicológicas, como faz Leopold Pospisil: “Podemos
definir uma sanção legal como um comportamento negativo de retirar
alguma recompensa ou favor que de outro modo (se a lei não fosse
violada) seria concedido, ou o comportamento positivo de infligir alguma
experiência dolorosa, seja ela física ou psicológica”. (POSPISIL 1958,
268).
Pospisil ainda lista quatro atributos para a lei que somados definem a norma jurídica em seu sentido estrito:
- Autoridade: o direito socialmente reconhecido de julgar e punir formal (tribunal, líder) ou informal (parentela, autocomposição).
- Universalidade: a predicabilidade de ter casos semelhantes serem consistentemente punidos.
- Obrigação: as violações são definidas pela relação de direitos e obrigações das partes.
- Sanção: a punição é manifestada na forma ou de prejuízo físico, material ou psicológico ou de retirada de favores, como o banimento, a fofoca e o ostracismo.
Por ter tanto o direito positivo, costumes, doutrina, operações e
relações jurídicas sob o mesmo plano, a antropologia jurídica não
distingue entre o dever-ser e o ser. Nessa disciplina, tanto o abstrato e
o concreto são manifestações da cultura, portanto sujeito aos mesmos métodos e teorias de análise.

Esse conceito de lei da antropologia jurídica é mais abrangente que
as concepções positivistas de lei adotada por muitos teóricos do
direito. Isso difere porque na lógica positivista o Estado é o autor e
executor da lei, enquanto a antropologia jurídica reconhece que há o
exercício de normas legais sem necessariamente haver interferência do
Estado. Dessa forma, a antropologia jurídica ocupa-se tanto do estudo do
direito de sociedades “simples” vivendo às margens do Estado —
indígenas, nômades, camponeses, favelas — quanto do estudo do direito
das sociedades complexas — tribunais, processos legislativos, polícia,
prisões, arbitrações, operadores do direito, além da comparação
entre sistemas jurídicos.
Há tópicos em antropologia que são importantes ao profissional do
direito, como também há tópicos do direito que servem ao antropólogo.
Algumas dessas noções comuns são o conceito pluralidade jurídica,
direito socioambiental, etnicidade, dinâmicas de poder, sanções
informais, mediação de comunidades de direito informal, relações
Estado-indivíduo, direitos humanos, responsabilidade social corporativa,
direito comparado, liberdade religiosa, liberdade de consciência em
tratamento médicos, dentre outros. No entanto, por si só o conjunto
desses tópicos não forma a disciplina da antropologia jurídica. É a
teoria da antropologia jurídica que os articulam.
Uma simples coleta de dados em si não é antropologia. O antropólogo e
sociólogo Bruno Latour passou meses assistindo às sessões de um
tribunal superior francês para entender a produção da justiça pelos
profissionais da lei. Se ele não lançasse mão da teoria, os dados
coletad
os seriam meras descrições.
Na formulação da teoria, a antropologia jurídica pode abordar os
tópicos mencionados e outras disciplinas, como psicologia, sociologia,
criminalística, história, geografia, e claro, o direito.
Outro exemplo da prática da antropologia jurídica no Brasil, os
poucos antropólogos do Ministério Público passam o tempo tentando
examinar e mediar entre interesses de partes distintas. Tipicamente
trabalham com causas indígenas, mas poderiam bem servir em direito de
família, coletivos e difusos ou do trabalho. Sem método ou teoria
antropológica, a atuação deles seria semelhante aos assistentes sociais.
Porém, diferente desses profissionais, pouca contribuição dos
antropólogos haveria, pois não tomariam responsabilidade pelos seus
assistidos.
Por essa razão, o testemunho de um antropólogo para ter validade
jurídica não se pode basear em uma entrevista e uma visita. Requer um
contato intenso e prolongado com as comunidades envolvidas, além de uma
interpretação cuidadosa e fundamentada dos fatos.
REFERÊNCIAS
HOEBEL, E. Adamson. The Law of Primitive Man: A Study in Comparative Legal Dynamics. Cambridge, MA: Harvard University Press, 1954.
NADER, Laura. Law in culture and society. Wenner-Gren Foundation for
Anthropological Research. Chicago: Aldine Publishing Company, 1969.
SHIRLEY, Robert Weaver. Antropologia Jurídica. São Paulo: Saraiva, 1987.
POSPISIL, Leopold J. . Kapauku Papuans and their law. New Haven: Yale University Press, 1958.
Imagem: http://www.la-razon.com/index.php?_url=/suplementos/la_gaceta_juridica/Antropologia-juridica-sistemas-normativos-gaceta_0_1983401745.html
Nenhum comentário:
Postar um comentário